sábado, 5 de fevereiro de 2005

Perdido?

Quando tudo está perdido sempre existe um caminho, quando tudo está perdido sempre existe uma luz: - mas não me diga isso...
Hoje a tristeza não é passageira, hoje fiquei com febre a tarde inteira e quando chegar a noite cada estrela parecerá uma lágrima...
Queria ser como os outros e rir das desgraças da vida ou fingir estar sempre bem, ver a leveza das coisas com humor: - mas não me diga isso...
É só hoje e isso passa! só me deixe aqui quieta, isso passa... - amanhã é um outro dia, não é?
Eu nem sei por que me sinto assim!
Vem, de repente, um anjo triste perto de mim...
- E essa febre que não passa e meu sorriso sem graça... Não me dê atenção, mas obrigado por pensar em mim.
Quando tudo está perdido sempre existe uma luz?
Quando tudo está perdido sempre existe um caminho?
Quando tudo está perdido eu me sinto tão sozinho...
Quando tudo está perdido não quero mais ser quem eu sou: - mas não me diga isso, não me dê atenção e obrigado por pensar em mim...

Legião Urbana

domingo, 30 de janeiro de 2005

Prestem atenção

"Não se entrega a chave do desejo a qualquer um, nem se deve implorar que alguém a pegue."

O Unicórnio e o Caçador

Muitas vezes, uma história começa na mais profunda escuridão, já que a maior aventura de todas é justamente achar o caminho para a luz. Assim foi com os nossos dois personagens. Personagens disparatados, diferentes. Que teria um a ver com o outro?
Ela era um unicórnio diferente. As pessoas geralmente associam um unicórnio com paz e bem-aventurança, com cura e inocência. Ela, no entanto, era o unicórnio da inocência perdida, e tinha durante sua longa vida usado mais vezes seu chifre mágico como espada que como meio de cura. Sim, ela tinha matado e ferido. Nunca por opção, mas com o cerrar de mandíbulas e a determinação feroz de quem luta por aquilo que tem de mais precioso.
Ela não se esquivava de derramar sangue, mas toda a vez lhe vinha o medo de que o cheiro de sangue derramado deixasse de lhe subir às narinas como podridão e ficasse atraente. Ela tinha medo de se tornar o que mais odiava: de se tornar uma criatura que mata por prazer. Temia esquecer que era um unicórnio. Não encontrava há muito com outros de sua espécie, que haviam se recolhido do mundo sensível para evitar encontros com seres humanos modernos.
Os humanos haviam mudado muito, e já fazia centenas de anos desde que a última donzela virgem e pura de coração havia colocado uma guirlanda de flores em seu pescoço. Muito, muito tempo se passara. Hoje era raro encontrar donzelas de qualquer espécie, e as mulheres não sabiam mais fazer guirlandas. A maioria nem tinha mais jardim para plantar flores. Ela, no entanto, não conseguia abandonar tudo com a facilidade dos outros unicórnios, sentia-se presa ao mundo material por um amor desesperado, e vezes sem conta ela se perguntara se esta sua incapacidade não seria uma falha grave em seu espírito. Será que lhe faltava algo?
Ser um unicórnio no mundo moderno fazia com que ela fosse arisca e temerosa. Poucos eram os lugares onde ela corria livremente. Na maior parte das vezes ela velava o sono de crianças escondida por trás do reflexo de prata da lua, e nem mesmo estas crianças sabiam que ela estava ali. Não, nenhum humano podia vê-la mais, pois a reação de reverência e adoração dos humanos de outros tempos desaparecera. Agora, humanos de todas as idades eram apenas predadores ferozes. Até as crianças bem pequenas, que em tempos remotos ao vê-la diziam "bonita!", hoje usavam outras palavras, como "meu!" e "dá!".
Vagarosamente, ela - que era um ser feito de e para a luz - mergulhou na solitária noite da alma. Ela estava só, totalmente só, sem iguais e sem amigos. Lentamente a tristeza tomava conta dela, e transparecia em todo o seu corpo. Ela já tinha sido da cor da areia mais branca quando bate o sol forte, agora sua pelagem tomava a cor amarelada do marfim antigo. Ela não tinha mais brilho e - se não fosse um ser imortal - poderíamos dizer que a velhice estava tomando conta dela. Mas não era velhice, não no sentido que os humanos ficam velhos, era cansaço. Cansaço de alma. Uma alma recoberta por anos de solidão e desencanto.
Não era natural nela fugir, se esconder, lutar e machucar. Ela era um ser que se deleitava na companhia de outros, na admiração que sabia suscitar. Um unicórnio era naturalmente vaidoso, e ela havia sido das mais vaidosas entre eles. Agora, quem se importava? Para quê manter-se bonita, se nem mesmo os animais a reconheciam mais? Se não havia mais puros de coração, que soubessem quem ela era?
Ela não podia partir, e não conseguia ficar. E vice-versa. O paradoxo foi transformando sua existência em uma tortura diária. Depois de pensar muito, por centenas de anos, ainda incapaz de abandonar o mundo que tanto amava e onde vivera por tanto tempo, ela tomou uma decisão: se no mundo não cabia mais sua beleza, ela se sacrificaria por ele antes que a feiúra do mundo a transformasse em um arremedo de si mesma. "Melhor derramar meu sangue, para que seja sugado pela terra e transformado em vida, que tornar-me um espectro e lentamente desaparecer" pensava ela. E começou a buscar alguém que a reconhecesse pelo que ela era, e a ajudasse a fazer este último sacrifício.
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Ele não se tornara caçador por gosto. Sequer gostava de caçar, na verdade. Pelo contrário, tantas e tantas vezes o olhar de suas presas, enquanto sucumbiam, era rememorado detalhadamente em longas noites de insônia. Ele não era caçador por prazer, era por necessidade, mas era dos melhores. Ele era um caçador moderno, um "executivo", e caçava outros de sua espécie.
Ele possuía um espírito sensível como poucos, e em sua infância e juventude isto era a causa de brigas constantes entre seus pais e ele. "Pare de sonhar, menino!" "Esta história de ficar em casa lendo romances já foi longe demais! Vá lá fora jogar bola!" A ladainha não tinha fim. Ele insistira com seus pais e tivera aulas de piano, mas o sonho de ser um concertista foi podado na raiz: "Música clássica uma ova! Isso é coisa de boiolinha! Você vai trabalhar na empresa do seu pai, e você sabe disso. Vá estudar administração. Piano é um bom hobby, elegante e refinado. E só."
Com o passar do tempo, sua profunda sensibilidade foi recoberta com camada após camada de cinismo, e ele descobriu que tinha uma armadura em lugar da sua alma. Por dentro, sentia-se oco. Por fora, duro como uma rocha. Foi o primeiro lugar de sua turma de administração na faculdade, e levou a empresa de seu pai a um sucesso que nunca tivera. Ele era rico, famoso, conhecido como empresário impiedoso. Quanto mais impiedoso era, mais a sociedade o incensava e caía a seus pés, e mais ele se odiava.
Como uma espécie de autoflagelação, ele caçava também animais selvagens. Cada um deles que morria em suas mãos era uma nova faca cravada em seu coração, era mais um fantasma a percorrer o deserto da sua alma. Era como se ele se punisse pela traição cotidiana cometida contra sua natureza verdadeira, matando a natureza a seu redor. E ele era bom neste tipo de caçada também. Caçara animais de todos os tipos, em todos os continentes. Tinha uma sala de troféus em sua casa, onde colocara seu piano. Enquanto ele tocava, os animais o fitavam com seus olhos de vidro. Vazios, como sua alma.
Ele caçava compulsivamente, e não sabia porque caçava, mas sabia que tinha que continuar caçando. Ele procurava por um algo que não sabia determinar, e enquanto não encontrava este algo, caçava. Caçou uma linda mulher para ser mãe de seus filhos, caçou para estes as melhores escolas. Mas era um marido de coluna social e um pai de porta-retratos. Sua mulher e seus filhos não conseguiam furar a armadura, e não desconfiavam do deserto que havia lá dentro. Ele não era mau com eles, apenas gentil e distante. A esposa se conformara com a vida de enfeite, e as crianças com a orfandade. Ninguém estranhava mais. Só ele sofria. E quando a dor estava a ponto de o destruir, ele ia para a sala de troféus e tocava piano. Ou partia para o mato para caça.
Foi justamente tocando piano no escuro, de madrugada, numa noite de lua cheia, que ela o encontrou pela primeira vez. Ele não a viu, a claridade da lua a escondia. Mas ela viu muito, viu a morte nas paredes e o tormento em sua música e em seus olhos. Ela entendeu que ali estava alguém que entendia a morte como ela. Alguém que compreenderia quem ela era e o que ela queria. Ele reconheceria nela a presa mais preciosa, e saberia honrar o seu sacrifício, a música lhe dizia. Ela decidiu naquele momento que este seria o caçador que a abateria.
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A caça estava arisca naquele dia, e ele pensava num misto de alívio e ansiedade que voltaria naquele dia sem um troféu, quando ela surgiu do meio das árvores. Só a sua presença trincou sua armadura de cima a baixo. Os dois podiam ouvir sua alma estalando como geleira na primavera. Ela se pôs diante dele, linda, trágica, só, eterna. Ele estava diante dela, nú e amedrontado, mortal, efêmero. Foi inevitável. Os dois se amaram perdidamente.
O choque de vê-la fez com que ele caísse de joelhos. Os olhos dela se suavizaram com a reação, e ela tocou um humano pela primeira vez em centenas de anos. Um leve toque com seu chifre, como uma bênção. A armadura partiu-se em mil pedaços com um estrondo. Ele começou a chorar. Chorou muito, muito tempo. Chorou por cada animal que matara, por cada homem de quem tomara o pão, por cada sonho perdido, chorava não sabia mais por quê. Era um dilúvio na sua alma. E ela pairava por sobre as águas.
Ela esperava, paciente. Sim, é assim que tem de ser, assim foi predestinado. Ela sabia. O amor dela por ele tornava o que estava por acontecer ainda mais sagrado. Afinal, haverá gesto de amor maior do que morrer por aquele que se ama? Num carinho, aproximou-se mais dele, e esfregou seu focinho aveludado no ombro curvado pelo choro. Ele agarrou-se a seu pescoço, desesperado, e chorou. Não poderia parar de chorar, nem se tentasse. E ele não queria parar.
Um longo tempo depois, esgotado o pranto, ela sussurrou em seu ouvido: "Faça o que tem de fazer...". Ele não conseguia falar, apenas sacudia a cabeça, exausto. Agarrado a ela. Não. Ela pediu: "Olhe para mim... Olhe em meus olhos."
Ele abriu os olhos e ela deu um passo atrás. Perdera o tom amarelado, perdera a desesperança. Ela faiscava como um prisma, refletindo todas as cores, era toda luz branca. Ele temia ficar cego depois de tanta luz. Ela olhava dentro de sua alma e via os indícios de primavera ali também. "Vamos, amado, termine o que começou. Liberte-nos."
Assunção Medeiros